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Uso de armas biológicas na Guerra da Ucrânia é pouco provável

Professora Patricia Beltrão Braga, do ICB-USP, explica por que é difícil, do ponto de vista das ciências biológicas, que esses ataques sejam realizados, por mais que existam acusações dessa possibilidade de ambos os lados do conflito.


Professora Patricia Beltrão Braga em eventoEm função de desdobramentos recentes da Guerra da Ucrânia, as armas biológicas, antigas ameaças em diversos conflitos ao longo da História, foram recolocadas no centro das discussões geopolíticas. Após a última reunião do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), o mundo voltou os olhos para o tema com a acusação russa de que a Ucrânia estaria produzindo toxinas letais em ao menos 26 laboratórios espalhados pelo país. 

 

Vasily Nebenzya, embaixador da Rússia na ONU, afirmou que os experimentos dos laboratórios são financiados pelo governo estadunidense para disseminar patógenos como leptospirose e cólera em seu território. Em resposta, Linda Thomas-Greenfield, embaixadora dos Estados Unidos na ONU, acusou a Rússia de estar desenvolvendo um programa de armas biológicas ao longo dos últimos anos.

 

Proibidas pela primeira vez no Protocolo de Genebra, assinado em 1925, após a Primeira Guerra Mundial, essas armas de destruição em massa foram condenadas devido aos seus efeitos devastadores e sua utilização passou a ser considerada uma violação ao direito internacional.

 

Para compreender as características e os riscos reais das armas biológicas, o Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) entrevistou a professora Patricia Cristina Baleeiro Beltrão Braga, virologista e coordenadora do Laboratório de Modelagem de Doenças.

 

O que são essas armas? 

 

Podemos definir armas biológicas como patógenos altamente contagiosos, com alta taxa de mortalidade, que são utilizados para matar uma população. Geralmente são vírus ou bactérias que já existem, dificilmente são fungos por conta do tempo que cada um desses patógenos vai levar para causar uma doença fulminante. 

 

A ideia é que a doença se espalhe rapidamente e tenha uma alta taxa de mortalidade em um curto período de tempo. O vírus Ebola, por exemplo, transmitido pelo contato direto com secreções humanas ou objetos, causa uma febre hemorrágica fulminante em cerca de quatro dias. Ele poderia ser utilizado como uma arma biológica. Já os vírus transmitidos por vetores como mosquitos, alguns com altas taxas de mortalidade para humanos, são de menor utilidade dentro de um contexto de guerra, pois não é fácil ter o controle da circulação dos vetores. Além desses, poderíamos imaginar o uso do vírus da varíola, altamente patogênico e de fácil disseminação. A varíola foi erradicada em 1980, então não é mais comum a sua vacinação, o que faria com que as pessoas ficassem suscetíveis à contaminação em um uso hipotético para fins bélicos. No caso do SARS-CoV-2, é difícil imaginar que seria uma possível arma biológica, já que o coronavírus têm uma baixa mortalidade, se comparado com outros patógenos. 

 

Quais são os meios de transmissão e contágio desses patógenos?

 

Geralmente essas armas são disseminadas pelo ar. Elas podem ser espalhadas de outra maneira, como pela água, mas a maneira mais eficiente é pelo ar, pois você pode pulverizar uma área. A forma de contaminação varia de acordo com o patógeno: alguns precisam ser ingeridos, outros inoculados na mucosa, existem também os de transmissão sexual. Há várias maneiras, mas os patógenos pensados para serem utilizados como armas biológicas precisam ter uma fácil disseminação. Então geralmente eles são inalados pelo contato com uma chuva de gotículas ou um pó. 

 

Há um risco real da produção de novas armas biológicas?

 

É possível reativar ou produzir novos vírus e bactérias em laboratório, os cientistas têm esse conhecimento através da engenharia genética possibilitada por ferramentas como a plataforma CRISPR/Cas9, por exemplo. Mas produzir novos patógenos não vale a pena economicamente, pois, para testá-los é necessária uma estrutura de biotecnologia e um laboratório com alto nível de biossegurança — o mais alto é o 4 — onde não haveria riscos dos pesquisadores entrarem em contato direto com o patógeno. Não é tão simples assim ter um laboratório desse nível escondido para produzir uma arma biológica. Então não é uma hipótese provável, considerando que já existem patógenos na natureza que podem ser usados com esse propósito.

 

Como são os laboratórios de nível 4 de biossegurança?

 

Os laboratórios de nível 4 são como salas dentro de salas. Para chegar ao 4 você precisa passar pelo 2 e depois pelo 3. Nele, a vestimenta utilizada pelos pesquisadores é como uma armadura formada por EPIs, para que haja a menor possibilidade possível de contato direto com o patógeno. Há também um nível de pressão do ar diferenciado para conter a circulação do vírus ou da bactéria.

 

Qual a importância dos laboratórios de nível 4?

 

Esses laboratórios podem ser usados para produzir armas biológicas, mas eles são necessários para que haja uma resposta a eventuais doenças e surtos. Uma das coisas mais importantes que podemos destacar hoje que tem sido feita no Brasil e no mundo é a formação de grupos de pesquisa para o rastreamento de patógenos emergentes. Isso, porque precisamos estar preparados para entrar em contato com eles: saber quais espécies deles existem, onde essas espécies estão, o que é possível ser feito para evitar a transmissão deles para os seres humanos. Esse tipo de vigilância é fundamental para estarmos preparados para possíveis novas pandemias.

 

Como o Brasil pode se beneficiar desse tipo de laboratório?

 

É fundamental que estejamos preparados. Hoje está no papel a construção de um laboratório nível 4 em Campinas e temos os de nível 3 em alguns locais do país. Em 2016, tivemos o Zika vírus, que foi uma emergência global mas estava agravado aqui, e em 2020 o Coronavírus. Em ambos os casos conseguimos responder rapidamente com pesquisas porque estávamos preparados, tínhamos laboratórios de nível 3 e profissionais capacitados. Se acontecer algo parecido com a Covid-19 apenas no Brasil, somos nós que teremos que responder. E um laboratório de nível de biossegurança 4 é o melhor local para estudarmos os patógenos quando ainda não os conhecemos, nem sabemos o que eles podem causar ou como se transmitem.

 

Quais são os níveis de biossegurança?

 

Nível 1 — O nível mais básico de biossegurança não possui barreiras primárias ou secundárias, apenas um local para a higienização das mãos, além das práticas padrões de microbiologia clínica.

 

Nível 2 — O laboratório conta com materiais de contenção primária ou dispositivos como uma cabine de segurança biológica. Escudos para borrifos, proteção facial e outros equipamentos de proteção individual são utilizados.

 

Nível 3 — O espaço possui cabines de segurança biológica ou outros equipamentos de contenção para as manipulações de patógenos. Os laboratórios possuem acesso controlado e sistemas de ventilação apropriados para a menor liberação de aerossóis infecciosos.

 

Nível 4 — O nível máximo de biossegurança é caracterizado pelo completo isolamento dos pesquisadores com relação aos patógenos manipulados. Essa proteção é realizada através de cabines de segurança biológica Classe III ou com um macacão individual suprido com pressão de ar. O laboratório geralmente é situado em uma área isolada e com complexos sistemas de ventilação e gerenciamento de resíduos.

 

 

Escrito por Pedro Ferreira | ICB-USP

Editado por Gabriel Martino | Agência Acadêmica de Comunicação