Professora Irene Yan, do Laboratório de Embriologia Molecular de Vertebrados, explica o imbróglio e seus possíveis desdobramentos. Caso não afeta a ciência básica.
Professora Irene Yan em palestra sobre o tema
Nas últimas semanas, um processo jurídico nos Estados Unidos sobre quem detém as patentes do sistema CRISPR/Cas9, ferramenta poderosa de edição de genes, ganhou o noticiário científico internacional. Espera-se que o imbróglio, relatado pela revista Nature, dure anos e há um medo de que isso possa acabar colocando em xeque o futuro da tecnologia — ao menos para as grandes empresas — e atrase o desenvolvimento de novas terapias.
Há dois grupos de pesquisadores de instituições norte-americanas na disputa. O grupo da Universidade da Califórnia, liderado por Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier, alega ser detentor da plataforma por ter descoberto o método e ter registrado a patente inicial, em 2012. Enquanto o grupo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e da Universidade de Harvard, liderado por Feng Zhang, acredita ter este direito por ter possibilitado a sua aplicação em humanos.
O CRISPR (Conjunto de Repetições Palindrômicas Curtas Regularmente Interespaçadas, em tradução livre para o português) é uma espécie de biblioteca das bactérias que têm as pistas para encontrar a “tesoura”, no caso a enzima Cas9, que possibilita mudar o código genético de uma célula, “cortando” com precisão e eficiência uma única região do genoma Assim, é possível orientar as células a produzirem ou não produzirem determinadas proteínas.
O sistema, encontrado na Universidade da Califórnia, ocorre naturalmente no sistema imune das bactérias, onde são produzidos RNAs que direcionam a enzima Cas9 para degradar o DNA de vírus invasores. Após sua descoberta, o grupo de pesquisadores conseguiu cloná-lo e aperfeiçoar essa atuação conjunta entre RNA e a enzima.
Até então, o CRISPR/Cas9 só funcionava em bactérias, que são seres procarióticos (sem núcleo). Então, o grupo de Harvard e MIT conseguiu adaptá-lo para atuar em seres vivos com células eucarióticas (com núcleo), ou seja, em humanos, animais, plantas, fungos e protozoários.
Para comentar o caso e os possíveis impactos no desenvolvimento de pesquisas, o Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) entrevistou a professora Irene Yan, do Laboratório de Embriologia Molecular de Vertebrados.
O quão revolucionária é essa tecnologia?
Ela é extremamente revolucionária porque possibilita editar genes com uma facilidade nunca antes vista. Antes, demorávamos seis meses para produzir um camundongo modificado. Hoje fazemos isso em menos de três meses. É um processo muito mais rápido, barato e simples do que tínhamos antes.
E porque ela é aplicável em todas as situações nas quais é preciso fazer a edição genômica. Isso é utilizado nas mais variadas formas de pesquisa básica, que busca desvendar mecanismos de funcionamento dos seres vivos. E em pesquisas avançadas, modificando células e animais visando à aplicação de testes clínicos com o viés de desenvolver novas terapias.
O sistema CRISPR/Cas9 foi utilizado, por exemplo, para rapidamente criar modelos animais que simulam patologias genéticas humanas. Além disso, a tecnologia comprovou-se eficaz na correção de mutações pontuais em linhagens celulares derivadas de pacientes. Estes ensaios e experimentos de pesquisa básica são necessários para otimizar a ferramenta antes dos testes para aplicações clínicas.
Como essa tecnologia tem sido usada no ICB?
No ICB, o sistema CRISPR/Cas9 tem sido amplamente usado para alterar o genoma de diversos modelos experimentais: desde linhagens celulares do sistema imune até embriões de galinha e mosquitos. Muitas destas alterações visam – não um aplicação clínica- mas elucidar questões de biologia celular fundamentais, removendo a atuação de uma proteína específica.
No nosso trabalho aqui no ICB e na maioria das pesquisas básicas não tem impacto, porque são estudos que não visam o lucro. Mas se é uma grande indústria que está desenvolvendo uma terapia que tem a edição gênica como base, ela não pode ser comercializada até que a justiça americana defina quem detém as patentes para pagar os royalties corretamente. E se tratando de pesquisas biomédicas, há um potencial de venda enorme desses produtos, pois são soluções que salvam vidas. Desta forma, eu imagino que é possível que as grandes corporações estejam buscando alternativas.
Já existem alternativas ao CRISPR?
Hoje a ciência busca aplicar outras enzimas em sistemas similares com o intuito de produzir outros efeitos. Por exemplo, proporcionar por meio do Cas13d, a modulação da expressão de um gene, alterando os níveis de RNA sem precisar mexer no código genético. Essas pesquisas já aconteciam independentemente do imbróglio legal e pelo fato do CRISPR/Cas9 ter sido descoberto, fica mais fácil desenvolver novas tecnologias pois os cientistas já sabem o “caminho das pedras”. No entanto, não deixa de ser um processo demorado para ser implementado em projetos gigantes.
É possível desenvolver novos sistemas sem precisar esperar a definição das patentes?
Como não se trata do CRISPR/Cas9, não há problemas em criar novos sistemas. No entanto, se eu desenvolver um produto comercial que utiliza o Cas9, ela não poderá ser usada por enquanto. Hoje há mais de 11.000 famílias de patentes em tecnologias relacionadas à plataforma.
Por Gabriel Martino | Agência Acadêmica de Comunicação