Testes foram feitos em hamsters, em células VERO e humana. Composto também apresentou baixa toxicidade.
Uma pesquisa do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) mostra que uma variação da calpeptina, a calpeptina S, tem grande potencial para se tornar um fármaco eficaz contra o SARS-CoV-2 e suas variantes. Em testes com hamsters, após o quinto dia de infecção, a molécula reduziu a produção de partículas virais na traqueia do animal. Em células VERO, de macacos, baixas concentrações do composto (na faixa de nanomolar) foram capazes de eliminar a carga viral, e em célula humana houve uma redução de até 80% nas alterações causadas pela invasão viral.
A calpeptina é uma molécula inibidora da calpaína, uma proteína que utiliza o cálcio do corpo humano para acelerar a quebra de moléculas de água, promovendo reações químicas. A molécula já vinha sendo estudada para tratamento de diversos cânceres e doenças crônicas. “No caso da covid-19, o diferencial em relação aos demais medicamentos já aprovados ou em estágio mais avançado de desenvolvimento, é que a calpeptina não só ataca a Mpro [proteína que atua na replicação do coronavírus] como também atua com mais intensidade na catepsina-L, uma das formas de acesso do coronavírus às células humanas”, afirma Edmarcia Elisa de Souza, pesquisadora do Unit for Drug Discovery, laboratório coordenado pelo professor Carsten Wrenger no Departamento de Parasitologia.
Alvo inédito – Ela explica que a catepsina-L é uma das proteases responsáveis pelo trabalho do lisossomo – organela que digere e elimina moléculas que não devem ser aproveitadas pela célula, como as moléculas do vírus, por exemplo. No entanto, no caso da covid-19, o efeito é reverso. As partículas virais, que entram na célula por meio de endocitose, são processadas pela catepsina-L presente nos lisossomos, o que acaba por aumentar a liberação do vírus, espalhando-o pelas células. “Como a catepsina-L está pouco sujeita a mutações, diferentemente das proteínas do próprio SARS-CoV-2, isso aumenta o potencial inibitório do composto em comparação com os demais fármacos”, afirma.
Em razão dos testes bem-sucedidos com células Vero e humana, validados por ensaios genéticos e de microscopia de fluorescência, a expectativa é que a calpeptina S seja ainda mais potente no organismo humano.
O composto também não causou efeitos tóxicos nas células testadas. “Havia dúvida se a calpeptina poderia alterar a estrutura da catepsina-L e produzir efeitos que pudessem prejudicar a funcionalidade das células, mas essa hipótese foi descartada nos nossos ensaios, o que explica porque o composto só se mostrou tóxico em doses muito maiores do que as necessárias para eliminar os vírus”, conta a pesquisadora.
Agora, com os resultados obtidos, os pesquisadores irão avaliar se a calpeptina S mantém boa performance contra a variante ômicron — como se imagina que aconteça. “Sabemos que a ômicron utiliza preferencialmente o mecanismo de endocitose para entrada nas células humanas. Isso indica que o fármaco deverá atuar com alto grau de inibição contra essa variante”, afirma.
Testes complexos – A calpeptina foi selecionada por pesquisadores alemães a partir de um estudo publicado em 2021 na revista Science. Entre 35 concorrentes, ela foi a molécula que obteve a melhor performance em uma triagem feita por meio de testes de cristalografia de raio-x. No processo, a calpeptina foi fundida a proteína, a Mpro.
Apesar de apresentar bons resultados, a calpeptina permanecia por pouco tempo nos organismos, o que reduzia a sua eficácia. A partir disso, os pesquisadores desenvolveram uma nova molécula, a calpeptina S, que é fundida com uma molécula oriunda do enxofre, para potencializar o fármaco. “Comparamos a calpeptina S com a calpeptina original no ICB e atestamos que a nova molécula foi efetiva para combater o vírus”, afirma.
Em seguida, foram realizados diversos ensaios enzimáticos e de cristalografia de raio-x para avaliar com qual das sete variações de catepsinas (que existem no corpo humano e que são responsáveis pelo espalhamento do vírus nas células), a calpeptina S interagia melhor e como funcionaria a interação entre elas e a Mpro.
Projeto internacional – Os resultados da pesquisa foram relatados em um estudo publicado na Communications Biology, revista do grupo Nature, feito em colaboração com pesquisadores da Universidade de Hamburgo e do Deutsches Elektronen-Synchrotron (DESY), ambos da Alemanha. O artigo contou ainda com a colaboração de grupos de pesquisa dos Departamentos de Biologia Celular e do Desenvolvimento e Microbiologia do ICB-USP.
O potencial do fármaco contra o SARS-CoV-2 foi identificado pelos pesquisadores alemães. Já os testes de validação da ação do composto contra o vírus em modelos animais e em células foram realizados no laboratório BSL3 Cell Culture Facility for Vector and Animal Research, de nível três de biossegurança (NB3), do ICB-USP.
A célula humana foi cedida pelo Laboratório de Biologia Celular e Molecular, coordenado pela professora Glaucia Maria Machado-Santelli, do Departamento de Biologia Celular e do Desenvolvimento; os vírus foram fornecidos pelo Laboratório de Virologia Clínica e Molecular, coordenado pelo professor Edison Durigon; e os ensaios em animais foram realizados em conjunto com o Laboratório de Pesquisa Aplicada à Micobactérias (LaPam), coordenado pela professora Ana Marcia de Sá Guimarães — ambos docentes da Microbiologia.
Por Gabriel Martino | Acadêmica Agência de Comunicação