Pesquisa de Brenda Kischkel tem como foco diversas espécies de fungos, incluindo a esporotricose, infecção que pode ser transmitida por animais, sobretudo gatos; tratamentos atuais possuem alta toxicidade e baixa eficácia.
Fungo Sporothrix schenckii
Fonte:Wikimedia Commons
Novas vacinas podem ajudar a diminuir a agressividade dos tratamentos de infecções fúngicas. É o que aponta a tese de doutorado de Brenda Kischkel, do Programa de Pós-Graduação em Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). O estudo abordou vias de inflamação em infecções fúngicas endêmicas e potenciais novas estratégias de tratamento para as doenças.
Seu estudo resultou em dois trabalhos, desenvolvidos parte no Brasil e parte no Radboud University Medical Center, na Holanda, em colaboração com os pesquisadores Leo A. B Joosten e Mihai G. Netea. Foram investigadas duas espécies do fungo Sporothrix: Sporothrix schenckii, encontrado em todo o mundo, e o Sporothrix brasiliensis, espécie recém-descoberta no Brasil e que causa doenças mais graves que a primeira. Endêmicas no país, as infecções causadas por esses dois fungos têm crescido nos últimos anos, em parte devido ao aumento de indivíduos imunocomprometidos — o Sporothrix brasiliensis já causou surtos no Rio de Janeiro, São Paulo e outras regiões do país.
Esses fungos são causadores de uma doença chamada esporotricose, que, ao contrário da maioria das infecções fúngicas, que afetam apenas indivíduos imunocomprometidos — portadores de HIV ou recém-transplantados, por exemplo — pode acometer qualquer pessoa. Para prevenir contra essas infecções e evitar casos graves, são necessárias novas formas de tratamento, sobretudo de imunização.
Os trabalhos discutem a vacinação a partir de diferentes estratégias. O primeiro, publicado na revista Frontiers in Immunology, busca estimular o sistema imunológico do hospedeiro, potencializando o tratamento, que viria associado com antifúngicos já disponíveis no mercado.
“Eu selecionei peptídeos, partes das proteínas da parede celular dos fungos, que não apresentam similaridades com o tecido humano. Verifiquei então que alguns desses peptídios poderiam induzir uma resposta imune por parte do organismo”, explica a pesquisadora. A partir daí, o próximo passo será sintetizar essas moléculas em uma vacina, trabalho que está sendo continuado no Laboratório de Micologia Médica do ICB. “Pensando inclusive na possibilidade de uma vacina multifúngica, selecionei peptídeos que estão presentes nas paredes celulares de várias espécies diferentes”, ressalta Kischkel.
O segundo trabalho, publicado na revista Cellular Immunology, explorou a resposta imune induzida pelo próprio fungo. A pesquisadora expôs células humanas a componentes da parede celular de diversas espécies de fungos — como os já citados Sporothrix brasiliensis e Sporothrix Schenckii. A partir disso, foram identificadas citocinas — moléculas que geram a resposta imune — com potencial para serem inibidas por meio de medicamentos específicos e, desta forma, reduzir a agressividade das inflamações que levam à destruição do tecido do paciente, o que permitiria um tratamento mais seguro utilizando os antifúngicos.
Seu doutorado foi ganhador do Prêmio Capes de Melhor Tese, a principal premiação para pós-graduandos no Brasil, na categoria “Ciências Biológicas (Microbiologia)”. A pesquisadora teve como orientador o professor Carlos Pelleschi Taborda, vice-diretor do ICB e coordenador do Laboratório de Micologia.
Outros tratamentos têm alta toxicidade — Entre 1992 e 2015 a esporotricose teve no país cerca de 5 mil casos em humanos, dentre os quais 782 ocasionaram hospitalizações. Ainda que em número relativamente baixo, os casos têm apresentado uma expansão geográfica, hoje afetando quase todo o Brasil. A doença é uma zoonose: é transmitida por animais, sobretudo gatos, o que também facilita sua disseminação nas áreas urbanas; além de ser sistêmica, ou seja, pode afetar diversos órgãos do corpo, inclusive a pele, se atingir a corrente sanguínea.
“Um problema grande das infecções fúngicas é que elas são muito debilitantes e agressivas, sobretudo em indivíduos com HIV. Diferente de infecções bacterianas, muitas vezes resolvidas com um antibiótico, as fúngicas têm um tratamento difícil e mais longo, podendo comprometer vários tecidos e órgãos devido a infecção ou pela toxicidade do tratamento”, explica Kischkel.
Segundo a pesquisadora, essa dificuldade surge pelo fato de que a célula humana é muito similar à célula fúngica em comparação com a célula bacteriana. Essa similaridade, em diversos componentes estruturais que constituem as células humanas e fúngicas, levam a casos de reações cruzadas pois o alvo do antifúngico possui um similar na célula humana, explicando a alta toxicidade de alguns antifúngicos. Em alguns casos, se o tratamento não for realizado corretamente, a infecção pode retornar em momentos de baixa imunidade do indivíduo.
Em função da alta toxicidade, a microbiologista chama a atenção para a necessidade de cautela no desenvolvimento de novos tratamentos: “as inibições das vias de citocina devem ser tópicas, pontuais, e não sistêmicas [completas]. A resposta imune tem sua função na luta contra a infecção, e bloqueá-la completamente pode ser perigoso.”
Para a pesquisadora, a doença é tida como negligenciada no Brasil e no mundo, o que pode ter sido um dos motivos pelos quais sua pesquisa obteve destaque na premiação. “Foi um trabalho que envolveu grupos internacionais de pacientes, e tratou de um fungo endêmico no Brasil. Iniciamos uma pesquisa que pode ser continuada por outros no futuro.”
Além de Kischkel, a pesquisadora Cristina Kraemer Zimpel, da Faculdade de Medicina Veterinária da USP, recebeu o prêmio na categoria Epidemiologia Experimental Aplicada às Zoonoses. Seu trabalho “Adaptação do hospedeiro de Mycobacterium tuberculosis e Mycobacterium bovis: uma abordagem genômica e transcricional” teve orientação de Ana Márcia de Sá Guimarães, professora do ICB e coordenadora do Laboratório de Pesquisa Aplicada à Micobactérias (LaPam).
Por Felipe Parlato | ICB-USP