Em palestra no ICB-USP, Alberto Kornblihtt mostrou como conhecimento sobre splicing alternativo do mRNA levou a novas estratégias terapêuticas com resultados promissores em camundongos modelo da doença.
O splicing alternativo do mRNA— processo pelo qual um mesmo gene pode gerar diferentes variantes de RNA mensageiro e, com isso, múltiplas proteínas — está no centro de uma nova abordagem terapêutica para doenças genéticas. Foi o que demonstrou o biólogo molecular Alberto Kornblihtt, do Instituto de Fisiologia, Biologia Molecular e Neurociências da Universidade de Buenos Aires e do CONICET (IFIBYNE-UBA-CONICET), em seminário realizado no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), na última segunda-feira (12/05).
Estudioso desse mecanismo desde os anos 1980, Kornblihtt explicou como a velocidade de transcrição do RNA interfere diretamente na forma como os éxons — segmentos codificantes dos genes — são incluídos ou excluídos na molécula final de RNA. “Em pelo menos parte dos genes humanos, transcrições mais lentas podem favorecer a ligação de fatores que promovem a inclusão de determinados éxons, enquanto transcrições rápidas podem impedir essa associação”, explicou.
Esse princípio tem implicações diretas no tratamento da atrofia muscular espinhal (SMA), uma doença genética rara que compromete os neurônios motores. Kornblihtt explicou o mecanismo de ação do fármaco Spinraza (nusinersena), aprovado em diversos países, incluindo o Brasil desde 2017. Embora a SMA seja causada por mutações no gene SMN1, o medicamento atua sobre o gene homólogo SMN2, corrigindo seu splicing e favorecendo a inclusão do éxon 7. Isso possibilita a produção de uma proteína funcional com atividade semelhante àquela codificada pelo gene defeituoso. O uso do Spinraza tem contribuído significativamente para a melhora da qualidade de vida dos pacientes com SMA.
Mas os experimentos de seu grupo revelaram algo inesperado: o medicamento não atua apenas no RNA, como se pensava, mas também interfere no empacotamento da cromatina, que corresponde à forma como o DNA está organizado dentro das células. Essa mudança na “embalagem” do DNA pode dificultar a leitura de certos genes, o que, em alguns casos, pode reduzir a eficácia do tratamento. “Percebemos que o oligonucleotídeo pode gerar um efeito contrário ao desejado, ao tornar o DNA menos acessível para ser transcrito. E isso ocorre por meio da indução de marcas epigenéticas associadas ao silenciamento, como a metilação de histonas — proteínas que, quando modificadas, tornam a cromatina mais compacta e dificultam a transcrição.
Foi a partir dessa constatação que sua equipe passou a testar combinações terapêuticas, unindo o antissenso a inibidores de histona-desacetilase, como o ácido valproico (VPA). Esses compostos promovem a abertura da cromatina e aceleram a elongação da transcrição, contrabalançando o efeito silenciador inesperado provocado pelo antissenso. Em experimentos com camundongos modelo da doença, a combinação levou a melhora expressiva da sobrevida, ganho de peso e desempenho motor dos animais em comparação ao tratamento com Spinraza isolado.
“Não estamos propondo um protocolo terapêutico pronto para humanos, mas uma prova de conceito. O efeito combinado foi claro nos testes com camundongos”, disse. Os resultados também mostraram que o ácido valproico, por si só, não tem efeito relevante — mas amplifica os efeitos do antissenso quando administrado em conjunto.
Além disso, Kornblihtt apresentou experimentos inéditos de edição epigenética direcionada, usando o sistema CRISPR-dCas9 acoplado a um ativador de transcrição (VP64), para promover acetilação de histonas de forma localizada no gene SMN2. Dependendo da região do gene onde a modificação é induzida — próximo ao éxon 7 ou em seu promotor, por exemplo — os efeitos sobre o splicing se intensificam. Em outro experimento, sua equipe demonstrou que essas alterações epigenéticas localizadas podem inclusive alterar a estrutura tridimensional do DNA, promovendo o chamado looping gênico, com aproximação física entre regiões distantes, como o promotor e o final do gene.
Ao final da palestra, Kornblihtt ressaltou que a lógica que move sua pesquisa é a da ciência básica: “Estávamos estudando como o splicing funciona, e não buscando uma cura. Mas esse caminho nos levou a contribuir com uma das primeiras terapias efetivas para uma doença neurodegenerativa”. Ele também alertou para a lógica de mercado que impede a realização de ensaios clínicos com combinações terapêuticas acessíveis, como a do Spinraza com VPA, por falta de interesse da indústria farmacêutica. “Esse é um ensaio que só será feito se for financiado por recursos públicos”, afirmou.
Membro das academias de ciências da Argentina, França, Estados Unidos e, agora, da Academia Brasileira de Ciências, Kornblihtt encerrou a palestra reiterando seu compromisso com a ciência de base, a universidade pública e o acesso democrático ao conhecimento e à saúde.
Angela Trabbold | Acadêmica Agência de Comunicação